Os meus olhos pesam e faço um esforço para ver se estou na rua certa.
Vejo que estou ao ver muita gente cá fora, mais do que estavam no dia anterior... Hoje ainda não chorei e acho que então será mais fácil embora seja o último dia, o último adeus.
Pessoas que já não via há muito tempo cumprimentam-me, abraçam-me e dão-me a força que nunca terei e pessoas que nunca vi dizem que está um dia quente e elogiam-me.
Entro e sinto que a temperatura baixou, o ambiente está triste, pesado e é impossível eu dar um sorriso a alguém... Ele continua ali e o que mais queria não aconteceu, que isto tudo fosse um pesadelo. A coragem não saiu comigo à rua novamente e tenho que me sentar no canto da sala para não olhar mais para a caixa que o envolve, seguro com força o saco que tenho na mão enquanto várias pessoas tentam também segurar-me.
As horas passam e cada vez mais pessoas chegam, mais barulho se houve na sala enquanto eu estou na mesma, de cabeça baixa sem qualquer emoção presente na cara e com o telemóvel constantemente a tremer com novas notificações.
A cerimónia começa e fico o mais perto possível para ainda assim estar longe de olhar, tento olhar para todos os lados menos para o que devia, reparo na quantidade de flores que trouxeram e penso se o que tenho no saco vai realmente sair de lá.
Nunca na minha vida havia presenciado algo assim, tão destruidor e eu sendo inútil para fazer qualquer coisa, isto não é um dos típicos jantares que estão calados, em baixo e me lembro de uma piada ou duas.
Sem dar por isso, a cerimónia termina e vejo todos darem-lhe um último beijo, olharem para ele uma última vez, e dizerem-lhe adeus com o verdadeiro significado da palavra, todos o fazem e sobrei eu. Senti os olhares de toda a gente em mim e penso que afinal não estava tremer antes como estava no momento sim, era tremer... Alguém me dá a mão por ser incapaz de ir de olhos abertos para lá então fecho-os, quando me largam a mão e estou sozinha com ele sobre os olhos de todos, penso que vou deitar o conteúdo que comi há demasiadas horas atrás para fora mas controlo-me... Olho para ele e penso por momentos não ser ele, tão fraco, frio, e os grandes olhos fechados.
Lembro-me que tenho que ser rápida porque estão todos à minha espera, vou ao saco e tiro de lá o cachecol, ouço choros mais altos por verem a minha intenção e eu controlo o meu, deixo-o de modo a que ele consiga tocar e sentir o nosso grande amor, o Porto.
Peço-lhe desculpa por só agora me chegar perto dele, peço desculpa por não ter saído do trabalho mais cedo e ter vivido com ele as últimas horas de vida dele e peço desculpa por tudo que me vem à cabeça naqueles pequenos segundos que tinha com ele, os últimos com ele.
Quando me afasto abraçam-me e fico grata porque caso contrário aquele chão iria engolir-me e choro, finalmente as pessoas naquela sala ouvem-me a bom som... Nunca havia chorado com tanta força e raiva por me terem tirado o companheiro de jogos, o senhor que todos os domingos me dava dois rebuçados de fruta, a pessoa que menos falava mas era a alma da mesa.
É preciso carrega-lo até ao seu novo ""lar"" e eu vou, sou a única mulher da família a segura-lo e não consigo pensar sequer no peso disto, começo a reviver todas as vezes que ele me carregou a mim também, quando me dava o miminho da semana, as caminhadas dele que com o tempo foram diminuindo até a doença proibir completamente, os jogos que presenciamos juntos no dragão, as danças tontas que tínhamos e os meus poucos jogos que a doença lhe permitiu assistir.
Sinto-me egoísta por mesmo tendo passado meio ano não conseguir aceitar mesmo sabendo que a nosso lado não estavas bem... Olha para nós mas especialmente por mim, perdoa-me por não dar o suporte necessário à grande mulher que a avó é, perdoa-me por não passar o tempo necessário que ela precisa mas aquela casa sem ti chega a ser assustadora para mim e para minha infância.
Não sou de palavras mas sim de ações e espero que tenha feito o suficiente para ser merecida da tua proteção aí em cima, a minha vida nada tem de especial quando me recordo de ti naquela cama de hospital com dificuldade de apenas respirar mas ainda conseguir mandar umas piadas comigo.
A tua partida era um aviso constante dos exames e da tua força cada vez menor mas nunca foi aceite por nós, por mim. Estás com a obrigação de me cobrar o que quiseres com a quantidade de lágrimas que ainda hoje deito, sei que não o querias...
Amo-te!
Até já minha estrelinha.
Para o meu avô António que hoje fazia anos.