13/08/2019

RoTiNA

Perguntaram-me se sou feliz com ele e antes de eu sequer responder o óbvio, acrescentaram para eu comparar com o primeiro dia de namoro.
E não foi preciso eu pensar muito para eu perceber que afinal não é assim tão óbvio, que o tempo muda as coisas e só nós mesmos é que controlamos a direção dessa (inevitável) mudança e foi depois desta reflexão assustadora que redobrei a minha atenção.

O dia chega ao fim e (já) não há uma chamada para ouvir e contar como foi o dia, aquela sensação de sermos abraçados mesmo sem sermos tocados, era bom demais falar e falar e quando ele se fartasse de me ouvir, tentar falar mais que eu só para me irritar.
Controlo os ponteiros do relógio para que mal seja hora eu descer, não sem antes confirmar que estou bonita, procuro pelo carro dele e volto a olhar para as horas só para ver o que já sabia. O tempo passa e ele chega, não que tenha olhado mas consigo saber que é ele, e quando entro no carro já não me sinto bonita... Não pela maquilhagem já não estar no ponto, não pelo cabelo ter apanhado com o vento mas sim porque percebi que o que estava a fazer-me (realmente) bonita era o sorriso estúpido de quem vai matar saudades e esse sorriso já não estar presente. Mas agora que olho para ele pergunto-me se é realmente isso ou se é o brilho que ele (já) não tem ao ver-me chegar que fez com que já não esteja bonita?
A noite ficou fria, percebo que estou tapada e o facto de não entender o porquê de tanto frio faz-me abrir os olhos e fico surpreendida ao ver que não estou na minha cama mas sim na dele, ele está nela mas está tão longe que (já) nem parece que estamos a dormir juntos.

O dia está a ser longo e silencioso devido a ter desligado o telemóvel e estar apenas eu e o barulho que faz lá fora, a esta hora ele já estará em casa a descansar depois do dia de trabalho e então como apaixonada que sou ligo o telemóvel à busca de um sorriso, por mais pequeno que seja, só preciso disso. Ao ler as mensagens dele, todas elas cheias de amor e carinho (já) não me arranca um único sorriso aliás, sou ameaçada por lágrimas a querer saltar fora, porque chega a um ponto em que palavras não chegam para o amor vencer, falta tudo o resto.
Devia sentir-me mal agradecida ou algo do género mas ao invés disso chego a pensar que eu (já) não sou suficiente, eu não "peço" por pedir mas sim porque sinto falta, porque um dia já tive tal.

Olho à minha volta e tento desfrutar o dia que havia sido planeado por mim desde o inicio do mês e está tudo a ser como devia de ser, muito calor e (só) nós os dois juntos e ao ver tudo com olhos de ver, vejo também que as minhas mãos estão no bolso tal como as dele e de imediato vejo algo de errado, mas ele (já) não vê a distancia que estamos a criar estando a centímetros um do outro.
Sempre confessei o medo que que tinha e tenho, da rotina... O que uma simples e inofensiva rotina pode fazer a uma pessoa, quanto mais a duas.
Estou à procura de motivos para não sentir que (já) não lhe sirvo, para tentar ver qual é o erro disto tudo se não, este... Eu.

Conforme fico mais madura vou percebendo que muitos casais terminam não pela falta de amor mas pela falta do novo e ao mesmo tempo do velho, a ausência das borboletas e da adrenalina do descobrir mais e mais.

Há relações que sobrevivem sem amor e outras que com amor terminam.
Mas eu não quero terminar, não estou pronta para desistir.
Não tivemos tempo nenhum.

26/04/2019

trOpeÇar

Encontro pessoas conhecidas e consigo ouvir comentários curiosos e ao mesmo tempo maldosos sobre o meu regresso, estes últimos anos ofereceram-me lições de vida e maturidade por isso simplesmente ignorei agarrando com mais força o saco do pão.
Sou desajeitada desde que me lembro e asseguro que ainda sou quando o saco do pão me foge das mãos ao tropeçar, não chego a cair, mas ao levantar o olhar peço para o tempo regredir para eu bater com a cabeça no chão e se possível desmaiar e acordar em casa.

O olhar dos meus pesadelos desta vez está bem à minha frente e pela falta de reação dele eu também não sou dos sonhos mais cor-de-rosa que ele tem.
Uma pedra invisível é-me atirada e sou relembrada que tenho de voltar e tento fugir deste precipício onde um dia voei. E como um choque os meus movimentos são novamente parados, é como se o toque dele fosse uma descarga de energia e todo o meu sangue começasse a circular demasiado rápido acordando sentidos que demorei a adormecer.

Um monte de perguntas são mandadas para o ar e tudo que consigo captar são os movimentos dele, a boca dele, os seus dedos a mexer no cabelo, agora mais curto, para aliviar o nervosismo. Não consigo falar, e por momentos parece que o mundo parou e todos estão à espera duma reação minha ou de outra questão.
Ofereço o maior sorriso que posso e ultrapasso-o fingindo nada ter acontecido e isto ser realmente um mau sonho.

Quando a porta se fecha sinto que estou em território seguro, só eu e ele.
Preparo o pão dele adivinhando que ele irá recusar o leite... Farta de esperar por ele, aviso que estou a caminho de lhe desligar a televisão e como se tivesse passado horas, sou novamente apanhada de surpresa.

Eles estão os dois frente a frente e a criança animada diz que o "senhor" tem as covinhas iguais às dele, esquecendo-se dos meus avisos para nunca abrir a porta sem a minha permissão.
O meu instinto é pegar nele e criar a máxima distância entre os dois, mando-o comer e fico novamente sozinha com ele.
Desta vez ouvi com clareza todos os seus pensamentos, do tempo que passou, dos caracóis dele serem iguais aos da criança e ter leves parecenças comigo, ele olha nos meus olhos e espera uma confirmação que ambos sabemos ser desnecessária.

Ele foi teu, mas já não o é. Assim como eu.

Ele tenta e penso ter visto uma tentativa de abraço, o meu reflexo é afastar-me e o olhar dele cai, pede desculpas justificando-se com aquilo que previ ele dizer, diz tudo e mais alguma coisa que tantas noites desejei ouvir agarrada à minha barriga, e sozinha.

O meu filho solta a palavra "pai", fazendo-me congelar, pergunta se é este quem tentávamos visitar no sitio escuro, e traduzindo para linguagem adulta, a prisão.
E com uma ultima troca de olhares ele saiu fazendo o que faz de melhor, decidir por mim.
Grito esquecendo que não estou sozinha e julgo-o, insulto-o por mais uma vez pensar saber o melhor para mim, adivinhou mal ao proibir o meu nome na lista de visitantes, supôs cruelmente que era o certo.

O melhor de mim era e sempre foi ele.
Até tudo mudar e eu vivenciar um amor maior, e esse sim, ser o melhor para mim e por esse motivo mais que válido parti para seis anos depois voltar às mesmas paredes com o meu filho a beijar-me as lágrimas dizendo baixinho que a mãe é feia quando chora.

Há males que vêm por bem, não achas? - recordo-me quando pela primeira vez ouvi a voz dele após ter tropeçado (não) acidentalmente em mim.

E chama-se Santiago.

10/01/2019

CHoquE

Não sei no que joguei para me ter saído tamanha sorte, mas fui extremamente esperto ao fazê-lo.
Nunca precisamos de muito para pôr todos da sala a olhar para nós, muitos risos e muitas historias para contar é o que toda a gente consegue tirar desta noite onde não existe horas.
Observo todos com muito cuidado e calma, sempre gostei de carregar no botão de desligar e apreciar no meu pensamento momentos como estes impossíveis de reviver... 

A minha mão treme e percebo que lhe devem ter contado das boas para ela se contorcer tanto a rir e se esquecer que estamos fora das nossas quatro paredes, não importa com quem estejamos e onde, é importante que ela sinta o meu toque para ela saber que eu sei que ela está ali, comigo. A comida foi num instante tal como o vinho, mas nunca a cumplicidade... Essa nunca apresentará copo vazio.

Sem dar conta a pele dela descola-se da minha e ambos somos levados para assuntos diferentes e para outros lugares da mesa. Depois de novidades contadas e de matar a curiosidade a todos, as vozes vão ficando em segundo plano enquanto olho para ela, e pergunto-me se alguma vez haverá altura que o deixe de fazer... O assunto é novamente mudado mas desta vez toda a gente participa e novamente, fico a observá-la, desta vez sem admirar.
Só para me fazer lembrar o caminho que percorri e com isso, hoje poder dizer que a noite vai ser boa devido a falta de sinais de cansaço, esta mulher é tão intensa que é capaz de estar cansada apenas por ser ela, ou então porque ela é mesmo assim, preguiçosa por si só.

O encontro é levado da melhor forma mas todos temos responsabilidades e devagar a mesa vai ficando vazia, sobrando apenas o necessário para a conversa morrer. 
Finalmente o barulho desapareceu e somos só nós, com ela atenta à sua condução mas ainda assim a cantar e a fazer uns comentários aleatórios acerca desta noite, e pergunto-me, como é que alguém consegue ser tão apaixonante sem sequer se esforçar, ela sabe que não precisa mas ainda assim, hoje foi capaz de se aperaltar não só para ela mas sim para me agradar, foi o que disse quando a vi.

Ainda hoje as horas parecem minutos e é como se o tempo tivesse ciúmes e apressasse as noites em que a tenho só para mim, isto é, eu iria perceber se fosse esse o caso.
Depois do suor desaparecer dando lugar ao frio e cansaço ela aconchega-se em mim, à procura de ninho.
Tal quando nos conhecemos, alguém congelado e frígido no olhar mas no entanto à procura duma fonte de calor que não lhe desse mais tarde um choque térmico.

Ela acabou por ser isso para mim, um choque. Os meus olhos não escondiam que eu a queria, mas ela querer-me a mim também? Fui um filho da mãe que esperou e alcançou e agora não quer abrir mão disto, de a poder observar a lutar contra ela mesma para não adormecer só para me poder ouvir. 

06/09