16/11/2017

ate já

Os meus olhos pesam e faço um esforço para ver se estou na rua certa.
Vejo que estou ao ver muita gente cá fora, mais do que estavam no dia anterior... Hoje ainda não chorei e acho que então será mais fácil embora seja o último dia, o último adeus.
Pessoas que já não via há muito tempo cumprimentam-me, abraçam-me e dão-me a força que nunca terei e pessoas que nunca vi dizem que está um dia quente e elogiam-me.

Entro e sinto que a temperatura baixou, o ambiente está triste, pesado e é impossível eu dar um sorriso a alguém... Ele continua ali e o que mais queria não aconteceu, que isto tudo fosse um pesadelo. A coragem não saiu comigo à rua novamente e tenho que me sentar no canto da sala para não olhar mais para a caixa que o envolve, seguro com força o saco que tenho na mão enquanto várias pessoas tentam também segurar-me.
As horas passam e cada vez mais pessoas chegam, mais barulho se houve na sala enquanto eu estou na mesma, de cabeça baixa sem qualquer emoção presente na cara e com o telemóvel constantemente a tremer com novas notificações.

A cerimónia começa e fico o mais perto possível para ainda assim estar longe de olhar, tento olhar para todos os lados menos para o que devia, reparo na quantidade de flores que trouxeram e penso se o que tenho no saco vai realmente sair de lá.
Nunca na minha vida havia presenciado algo assim, tão destruidor e eu sendo inútil para fazer qualquer coisa, isto não é um dos típicos jantares que estão calados, em baixo e me lembro de uma piada ou duas.
Sem dar por isso, a cerimónia termina e vejo todos darem-lhe um último beijo, olharem para ele uma última vez, e dizerem-lhe adeus com o verdadeiro significado da palavra, todos o fazem e sobrei eu. Senti os olhares de toda a gente em mim e penso que afinal não estava tremer antes como estava no momento sim, era tremer... Alguém me dá a mão por ser incapaz de ir de olhos abertos para lá então fecho-os, quando me largam a mão e estou sozinha com ele sobre os olhos de todos, penso que vou deitar o conteúdo que comi há demasiadas horas atrás para fora mas controlo-me... Olho para ele e penso por momentos não ser ele, tão fraco, frio, e os grandes olhos fechados.
Lembro-me que tenho que ser rápida porque estão todos à minha espera, vou ao saco e tiro de lá o cachecol, ouço choros mais altos por verem a minha intenção e eu controlo o meu, deixo-o de modo a que ele consiga tocar e sentir o nosso grande amor, o Porto.
Peço-lhe desculpa por só agora me chegar perto dele, peço desculpa por não ter saído do trabalho mais cedo e ter vivido com ele as últimas horas de vida dele e peço desculpa por tudo que me vem à cabeça naqueles pequenos segundos que tinha com ele, os últimos com ele.
Quando me afasto abraçam-me e fico grata porque caso contrário aquele chão iria engolir-me e choro, finalmente as pessoas naquela sala ouvem-me a bom som... Nunca havia chorado com tanta força e raiva por me terem tirado o companheiro de jogos, o senhor que todos os domingos me dava dois rebuçados de fruta, a pessoa que menos falava mas era a alma da mesa.

É preciso carrega-lo até ao seu novo ""lar"" e eu vou, sou a única mulher da família a segura-lo e não consigo pensar sequer no peso disto, começo a reviver todas as vezes que ele me carregou a mim também, quando me dava o miminho da semana, as caminhadas dele que com o tempo foram diminuindo até a doença proibir completamente, os jogos que presenciamos juntos no dragão, as danças tontas que tínhamos e os meus poucos jogos que a doença lhe permitiu assistir.

Sinto-me egoísta por mesmo tendo passado meio ano não conseguir aceitar mesmo sabendo que a nosso lado não estavas bem... Olha para nós mas especialmente por mim, perdoa-me por não dar o suporte necessário à grande mulher que a avó é, perdoa-me por não passar o tempo necessário que ela precisa mas aquela casa sem ti chega a ser assustadora para mim e para minha infância.

Não sou de palavras mas sim de ações e espero que tenha feito o suficiente para ser merecida da tua proteção aí em cima, a minha vida nada tem de especial quando me recordo de ti naquela cama de hospital com dificuldade de apenas respirar mas ainda conseguir mandar umas piadas comigo.

A tua partida era um aviso constante dos exames e da tua força cada vez menor mas nunca foi aceite por nós, por mim. Estás com a obrigação de me cobrar o que quiseres com a quantidade de lágrimas que ainda hoje deito, sei que não o querias...

Amo-te!
Até já minha estrelinha.

Para o meu avô António que hoje fazia anos.

03/11/2017

TeMPo

Ao fim de um longo tempo finalmente arranjei tempo para sair, para estar com os meus amigos e com as pessoas que me fazem bem. O sítio é adequado para nós e já vejo quase o grupo todo sentado a rir de coisas à toa e noto que ela ainda não chegou, quando é que ela chega cedo mesmo? A minha falta foi sentida pelo que ouço mas no entanto sinto algo estranho ouvindo a forma como falam para mim, a única cadeira vazia existente está à minha frente e apetece-me bater em alguém por saber que foi ideia de algum deles.
Penso que o tempo realmente parou mas não, só é impressão minha porque só eu reparei na chegada dela embora ela ainda não tenha reparado que é alvo da minha atenção, ela sorri a todos e quando olha ao longo da mesa vê o sítio dela e senta-se, amarra o cabelo como hábito que tem quando vai comer e só aí olha para mim.
Nada mudou, os olhos continuam escuros embora desta vez com qualquer coisa diferente, ela dá um sorriso e qualquer coisa em mim se contorce, sempre o mesmo efeito de sempre.
A noite foge-nos pelos dedos com tanta coisa que temos para contar uns aos outros ainda temos as típicas fotos e partidas, ela está linda e contínua a controlar otimamente o que come. Ouvi sempre atentamente tudo que ela contava visto que hoje em dia já não sou a primeira pessoa a quem ela liga ao fim do dia, ela ri das próprias situações vergonhosas e consegue brincar com toda a gente pondo toda a gente bem disposta, sempre foi o comando deste grupo.
Todos crescemos e já não temos autocarros para apanhar, apenas o carro para procurar no parque de estacionamento ainda cheio e vejo um a um a dizerem-me adeus inclusive ela, e dizem para desta vez não desaparecer do mapa e acho que me apercebo o que fiz este tempo todo.
Eu tinha tempo para sair, oh se tinha, mas o meu maior medo era sempre ela, sabendo que a decisão foi tomada por mim não foi felicidade minha ter de a ver cada vez mais magra, mais em baixo menos ela... Doeu como tudo não poder fazer nada mas como se tivesse estado a dormir este tempo todo ela levantou-se, e o que ela mostra é felicidade, independência e muita vida.
O vestuário dela está mais cuidado ainda mais do que antes, já não aplica a pouca maquilhagem que usava, e já não está colada ao telemóvel para não ter que olhar nos meus olhos e mostrar que não tinha ninguém, que de certa forma ainda estava presa a mim...Hoje, é como se a época triste que ela viveu e eu assisti tivesse desaparecido e está uma nova mulher embora ainda veja coisas que mais ninguém vê, que nem ela própria sabe que possui... Ela ri sem medo do volume, fala com todos de tudo porque ela cresceu, ganhou conquistas e tem novas ambições, ela consegue falar de tempos nossos antigos sem ser má ou gozona, na verdade consigo ver um sorriso, um sorriso que mostra que ultrapassou e que principalmente não precisa de nenhum homem para ser feliz, que não precisa mais de mim.

O tempo voa e com ele foi-se ela, e o culpado fui eu por não ter visto o que estava a desamarrar de mim.

Pensei que ela me tivesse perdido, estava errado porque visto com outros olhos, ela foi quem menos perdeu.
A maneira como ela caminha e me acena a ultima vez mostra-me que a única coisa que ela perdeu foi tempo ao tentar fazer-me ver isto, ela, a ir embora.