26/04/2019

trOpeÇar

Encontro pessoas conhecidas e consigo ouvir comentários curiosos e ao mesmo tempo maldosos sobre o meu regresso, estes últimos anos ofereceram-me lições de vida e maturidade por isso simplesmente ignorei agarrando com mais força o saco do pão.
Sou desajeitada desde que me lembro e asseguro que ainda sou quando o saco do pão me foge das mãos ao tropeçar, não chego a cair, mas ao levantar o olhar peço para o tempo regredir para eu bater com a cabeça no chão e se possível desmaiar e acordar em casa.

O olhar dos meus pesadelos desta vez está bem à minha frente e pela falta de reação dele eu também não sou dos sonhos mais cor-de-rosa que ele tem.
Uma pedra invisível é-me atirada e sou relembrada que tenho de voltar e tento fugir deste precipício onde um dia voei. E como um choque os meus movimentos são novamente parados, é como se o toque dele fosse uma descarga de energia e todo o meu sangue começasse a circular demasiado rápido acordando sentidos que demorei a adormecer.

Um monte de perguntas são mandadas para o ar e tudo que consigo captar são os movimentos dele, a boca dele, os seus dedos a mexer no cabelo, agora mais curto, para aliviar o nervosismo. Não consigo falar, e por momentos parece que o mundo parou e todos estão à espera duma reação minha ou de outra questão.
Ofereço o maior sorriso que posso e ultrapasso-o fingindo nada ter acontecido e isto ser realmente um mau sonho.

Quando a porta se fecha sinto que estou em território seguro, só eu e ele.
Preparo o pão dele adivinhando que ele irá recusar o leite... Farta de esperar por ele, aviso que estou a caminho de lhe desligar a televisão e como se tivesse passado horas, sou novamente apanhada de surpresa.

Eles estão os dois frente a frente e a criança animada diz que o "senhor" tem as covinhas iguais às dele, esquecendo-se dos meus avisos para nunca abrir a porta sem a minha permissão.
O meu instinto é pegar nele e criar a máxima distância entre os dois, mando-o comer e fico novamente sozinha com ele.
Desta vez ouvi com clareza todos os seus pensamentos, do tempo que passou, dos caracóis dele serem iguais aos da criança e ter leves parecenças comigo, ele olha nos meus olhos e espera uma confirmação que ambos sabemos ser desnecessária.

Ele foi teu, mas já não o é. Assim como eu.

Ele tenta e penso ter visto uma tentativa de abraço, o meu reflexo é afastar-me e o olhar dele cai, pede desculpas justificando-se com aquilo que previ ele dizer, diz tudo e mais alguma coisa que tantas noites desejei ouvir agarrada à minha barriga, e sozinha.

O meu filho solta a palavra "pai", fazendo-me congelar, pergunta se é este quem tentávamos visitar no sitio escuro, e traduzindo para linguagem adulta, a prisão.
E com uma ultima troca de olhares ele saiu fazendo o que faz de melhor, decidir por mim.
Grito esquecendo que não estou sozinha e julgo-o, insulto-o por mais uma vez pensar saber o melhor para mim, adivinhou mal ao proibir o meu nome na lista de visitantes, supôs cruelmente que era o certo.

O melhor de mim era e sempre foi ele.
Até tudo mudar e eu vivenciar um amor maior, e esse sim, ser o melhor para mim e por esse motivo mais que válido parti para seis anos depois voltar às mesmas paredes com o meu filho a beijar-me as lágrimas dizendo baixinho que a mãe é feia quando chora.

Há males que vêm por bem, não achas? - recordo-me quando pela primeira vez ouvi a voz dele após ter tropeçado (não) acidentalmente em mim.

E chama-se Santiago.

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